POR POUCO

          Cândido se aproximou do homem que estava com a cara para cima e disse que, muitas vezes, a sina de uma pessoa se devia a outrem.

          – ...
          – Sampaio, 32 anos, residia num prédio decente. Então, quando naquela noite chegou ao seu porto seguro, isso por volta das 21:30 horas, não avistou o porteiro plantado na portaria. Como um fantasma, acessou o elevador e, em seguida, o seu apartamento. Residia sozinho. Sugado pelas chatices corriqueiras, visitou a geladeira. Despiu-se. Zanzou pelado pelo quarto, banhou-se, vestiu roupa de dormir e se alimentou. Via celular, deu atenção à namorada. Consultou a agenda do dia seguinte, resolveu pendências do próprio trabalho, e foi deitar. Por volta das 2:30 horas da madrugada, em pleno sono, despertou com movimentação sob a cama. Não criava animais. De um salto, correu para a cozinha, apoderou-se de uma faca e aguardou que o suposto malfeitor se apresentasse. Como não aconteceu, retornou ao quarto, acendeu a luz e, ao encurvar–se para verificar o que havia sob a cama, avistou nada mais nada menos que a saliente Valesca, de oito anos de idade, recente moradora do prédio. Atônito, quis saber que diabos ela estava fazendo em seu apartamento. Ignorando a pergunta, a menina deixou o esconderijo ou o aconchego, queixando-se de vazio no estômago: fome. Assim, como se fosse a dona do espaço, dirigiu-se à cozinha. Selecionando frutas para triturá-las, o atônito “pai” explicou que o liquidificador era tão barulhento quanto uma motocicleta. Eram duas e tanta da manhã. Contrapôs banana amassada com leite. Aceitou. Enquanto preparava o lanche da pirralha e faminta intrusa, perguntou como tinha acessado o apartamento. Ela sorriu, ignorando que a bondade e paciência do pobre homem eram de aflição. Pois, abriria a porta e diria volte para o seu apê, querida! Vizinha? A sua sobrinha se encontra comigo. Jurado míope de plantão não faltava. Para agravar o martírio, a garota afirmou que ele fumava. Inquiriu se ela estava dormindo quando ele chegou. Conteve-se na resposta meditando e respondeu que estava.
          – Será?
          – Enquanto ela comia banana amassada, massadamente, ele a olhava. De estalo, aproximou-se do basculante. Residia no oitavo andar. Sondou a estrutura do prédio, envolvida pela escuridão e, convencido, afirmou que ela havia adentrado por ali. Sorriu como se tivesse praticado maravilhosa aventura. Sampaio não tinha a mínima obrigação de manter o basculante fechado. Dava para o vazio. Ela, inocente que brincou com a sorte. Algo o impulsionou ir à janela da sala. Foi quando avistou duas viaturas da policia, com giroflexes ligados, paradas na porta do prédio. O que estariam fazendo ali?
          – O que temia?
          – Nada sabia sobre a idoneidade da tia da menina. Escandalosa e agressiva. Portanto, tinha de saber como lidar com a delicada situação. Residia sozinho. Pensou em entregá-la aos policiais. Mas seria levada à delegacia. A garota seria submetida a testes e entrevistada por assistentes sociais cujo relatório seria tranquilizador. No entanto, constaria, no mínimo, que a garota jamais poderia ter acessado o apartamento como a própria e o suspeito haviam afirmado.
          – Suspeito?
          – Não é assim? De volta à cozinha, quis saber da “hóspede” se queria voltar para o apartamento da tia. A reação foi imediata e reveladora. Saltou da cadeira, correu para o quarto e voltou a se esconder sob a cama. Sentiu-se aliviado, pois acusação do que fosse não estaria com ele. No ínterim, escutou conversas no corredor, aproximou-se da porta e pôs ouvidos sob escuta. Captaram que a mãe da menina estava para chegar. Momentos depois, ouviu o interfone replicando como se estivesse tocando de apartamento em apartamento. Chegada a vez dele, atendeu. O porteiro perguntou se Valesca, moradora do apartamento 601, dois andares abaixo do dele, encontrava-se com ele. Respondeu que sim. O porteiro pediu que descesse com a menina; a mãe a aguardava. O prédio tinha sido sacudido. Ao pisar na portaria, avistou a princípio a tia da menina: jovem e gorda. Enfezada, se sacudindo num canto. E um bom número de vizinhos, muitos em trajes de dormir. Valesca era extrovertida aos extremos, daí a plateia. Ao entregar a menina, gaguejando, a senhora pediu para que se tranquilizasse uma vez que não era a primeira vez que ela fazia aquilo. Passava alguns dias com a tia. Mas, ao que parecia, as residências dos tios não eram ‘a praia’ dela.
          – ... Leveza...
          – Total. Dias depois se encontrou com o síndico, contou como a garota havia acessado o seu apartamento. Dirigiram-se ao local. Olhando para o alto, verificando a peraltice praticada pela menina, a autoridade do prédio indagou nem uma, nem duas, nem três vezes se a garota havia realmente adentrado por ali. Pois parecia impossível. Sampaio nada argumentou. Seu silêncio estendeu para o bom relacionamento que mantinham.
          – Agiu certo.
          – Certíssimo.


ILUSÃO OU FATO?

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